sábado, 25 de abril de 2009

Não para todos...Só para loucos


"Existe um número bastante significativo de pessoas do mesmo género de Harry; entre os artistas, sobretudo, há muitos que pertencem a essa casta. São pessoas que têm em si duas almas, duas essências, neles o divino e o diabólico, o sangue materno e o sangue paterno, o dom da felicidade e o dom do sofrimento, co-existem e interpenetram-se tão hostil e desordenadamente como o lobo e o homem em Harry. E essas pessoas, cuja vida é de imenso desassossego, experimentam por vezes nos seus raros momentos de felicidade uma sensação de tão indizível beleza e de uma tal intensidade, a escuma dessa momentânea felicidade inrompe por vezes tão alta e resplandecente por sobre o mar do seu sofrimento, que essa felicidade breve e luminosa na sua irradiação também aflora e enfeitiça os outros. É assim que nascem, como espuma de felicidade fugaz e preciosa acima do mar do sofrimento, todas aquelas obras de arte pelas quais um só homem sofredor se elevou tão alto, no espaço de uma hora, acima do seu próprio destino, que a sua felicidade irradia como uma estrela e aparece a todos os que a vêem como algo de eterno, e como o seu próprio sonho de felicidade. Todas essas pessoas, quaisquer que sejam os nomes dos seus actos e das suas obras, não têm realmente vida de espécie nenhuma, quer dizer, a sua vida não é existir, não tem forma, não se trata de heróis, artistas ou pensadores no sentido em que os outros são juízes, médicos, sapateiros ou professores, não, a sua vida é um fluxo, uma rebentação eterna e penosa, é miserável e dolorosamente despedaçada, e é horrenda e vazia de sentido, se não estivermos dispostos a descobrir-lhe um sentido naquelas tais raras vivências, acções, pensamentos e obras que resplandecem por sobre o caos de uma vida assim. Entre os homens dessa espécie nasceu a perigosa, a terrível ideia que talvez toda a vida humana não passe afinal de um grande equívoco, de um aborto violento e fracassado da Mãe primeira, de uma tentativa selvagem e sinistramente malograda da Natureza. Mas entre eles surgiu também aquela outra ideia de que o homem talvez não seja apenas um animal medianamente racional, mas antes um filho dos deuses, e destinado à imortalidade."

Hermann Hesse, O Lobo das Estepes

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